Em algum canto de uma cidade engasgada por sonhos que nunca dormem, as almas acordavam cada dia com um buraco no peito, uma espécie de fome que nunca se sacia. O sol não perguntava mais nada, já sabia das respostas, das mesmas vontades de sempre, como um disco arranhado tocando a trilha sonora de um filme repetido.
Lá, vivia um cara que queria tudo, sempre mais. Queria tanto que parecia que o desejo ia acabar devorando ele de dentro pra fora. Queria um carro que brilhasse mais que o olhar dos outros, uma casa que fosse grande o suficiente pra se perder dentro dela, e aquela tapinha nas costas que dissesse que ele era alguém. Ele conseguia, sorria, mas aquele sorriso se esvaía mais depressa que fumaça ao vento.
Ele não jogava solo nesse cassino de sonhos. Tinha uma mulher por lá, querendo encontrar o amor como quem procura o último cigarro no maço vazio. Ela buscava em cada esquina, em cada palavra dita ao vento, em cada promessa que caía no chão como papel de bala. E a cada vez que achava que tinha encontrado, era só o calor de um fósforo queimando rápido demais e deixando só cinzas na madrugada.
As crianças, pequenos fantasmas ainda não cansados da vida, brincavam pelas ruas com desejos simples: doces que deixam a boca azul, brinquedos que se quebram antes de virar memória, um colo de pai, um beijo de mãe. Mas a vida já ia ensinando a elas que querer não é sempre ter, e a noite vinha pra dizer que alguns sonhos precisam esperar.
Então, todo mundo naquela cidade respirava desejo, soprava sonhos, enchia o peito de esperança e esvaziava de sentido. O que eles estavam caçando de verdade? Alguém tinha o mapa da mina ou estavam todos cavando no escuro?
Num canto dessa cidade, um jovem com os olhos cheios de arte queria pintar o quadro que parasse o tempo. Queria arrancar a beleza do nada e fazer ela durar pra sempre. Com cada rabisco, sonhava em assinar seu nome nas estrelas, mas a cada vez que encarava a tela branca, o nada olhava de volta, cheio de possibilidades que o assustavam.
Tinha também o velho sábio, que já tinha visto muitas luas se levantar e cair sobre esses telhados, ele tinha um apetite que não era por comida: era por saber. Devorava livros como quem busca a última peça de um quebra-cabeça eterno. Mas cada resposta era a chave de uma nova porta, para um quarto cheio de novos enigmas. E assim, ele carregava o fardo do conhecimento, um saco cheio de pedras que nunca parava de encher.
E não podemos esquecer do sujeito que batia ponto todo santo dia, cujo sonho era um pouco de silêncio e um par de sapatos sem buracos. Cada dia de luta era só para chegar naquela hora em que ele podia jogar o corpo no sofá e deixar o mundo girar sem ele. Mas o descanso é como um gato selvagem, vem quando quer, não quando é chamado.
Pelos cantos da cidade, desejos se cruzavam como fios desencapados, faíscas voando. Eram a gasolina e o incêndio, a razão para acordar e o motivo para não conseguir dormir. Era a cidade pulsando, batendo, vivendo.
E todo mundo, de alguma forma, rodava no mesmo carrossel: desejar, agarrar, perder e depois, no final, sentir um buraco onde antes tinha alguma coisa. Era como correr atrás do horizonte, achando que vai chegar em algum lugar.
Alguns começaram a se coçar por dentro, perguntando, "Pra que tanto desejo?" Era como ter um bicho dentro do peito, roendo as bordas da alma, deixando sempre uma fome que comida nenhuma enchia.
A grande verdade batendo no peito de cada um era que ninguém se safava desse jogo. O desejo era o chefe, o que mandava sem dizer uma palavra, regendo um concerto onde todos tocavam sem saber direito a música.
O sujeito do carro zero, a dama à caça de um par, o jovem com os pincéis, o sábio com os livros, o trabalhador do batente duro, as crianças com seus joelhos ralados... Todos eles seguiam a batida do mesmo tambor, marchando no ritmo do querer.
A cidade era um coração batendo desejos, soltando sonhos, engolindo esperanças. Mas e se de repente todo mundo parasse de querer? Será que o silêncio seria um grito ou um abraço?
Todos estavam procurando a porta de saída ou a próxima entrada, balançando entre a luz e a sombra dos desejos, nessa roda-gigante que não tem fim, que era ao mesmo tempo a dor e o doce da vida.
Na realidade crua de um desejo satisfeito, percebemos que não passa de um copo vazio numa mesa cheia de promessas. A vontade, esse bicho voraz que vive nas entranhas, só sossega para tomar fôlego antes de morder a isca novamente.
O truque, então, não é acumular conquistas que são, no fim, meros grilhões dourados que nos prendem à roda incessante do querer. É reconhecer que essa fome insaciável é o próprio motor de um sofrimento sem fim, a manifestação da vontade cega que nos impulsiona para o abismo. A verdadeira liberdade, se tal coisa ousarmos almejar, está não no preenchimento de cada desejo, pois este é o caminho para a escravidão perpétua, mas na renúncia serena, na sublime rejeição da vontade que nos esvazia. O supremo ato de coragem é, portanto, a abdicação do jogo do querer.
Mas não se anime mero mortal, pois, para a maioria de nós, isso é uma tarefa hercúlea, quase uma miragem. É um ideal nobre, mas tão distante quanto as estrelas que cintilam com promessas acima de nós. Portanto, apesar de sabermos que pode ser melhor resistir à incessante roda do querer, nos entregamos à nossa natureza humana e dizemos: que se dane. Vamos continuar desejando, porque é o que fazemos, é o que somos, criaturas eternamente em busca de algo mais.